Tecnologias para combater a COVID-19: uma implementação apressada

Tecnologias para combater a COVID-19: uma implementação apressada 150 150 Estamos vigilando

Tecnologías para combatir el Tecnologias para combater a COVID-19: uma implementação apressada

Diferentes Estados da América Latina desenvolveram “soluções tecnológicas” que prometem ajudar no combate à COVID-19. Foram criados diversos dispositivos de saúde, aplicativos móveis, softwares para rastreamento dos sintomas e do contágio, ferramentas para sistematizar a informação coletada e uma infinidade de tecnologias que ajudariam a reduzir o impacto do vírus. 

No âmbito do projeto #EstamosVigiando, coordenado pelo CEJIL em parceria com as organizações FLIP Colômbia, Direitos Digitais Chile, Open Knowledge Brasil e IDHUCA El Salvador, analisamos diferentes ferramentas tecnológicas com capacidade de vigilância implementadas nesses países por ocasião da pandemia. O projeto promove maior transparência e a devida diligência na implementação de tecnologias com capacidade de vigilância. 

Para a realização dessa pesquisa, as organizações participantes enviaram solicitações simultâneas de acesso à informação, a fim de conhecer mais sobre a aquisição e a implementação de algumas dessas tecnologias. Um dos objetivos da apresentação das solicitações foi verificar se os Estados realizaram avaliações do impacto da implementação destas tecnologias para os direitos humanos. 

A difusão de tecnologias na ausência de regulamentação

A princípio, o uso de tecnologias capazes de ajudar a combater a COVID-19 é legítimo. Entretanto, em nível regional, há uma tendência preocupante no que se refere à viralização do uso e aquisição dessas tecnologias como forma de responder a uma série de desafios sociais, incluindo a gestão da pandemia. Os Estados tendem a omitir considerações sobre dados pessoais, liberdade de expressão ou privacidade, enquanto afirmam cumprir com as normas de cada país. Ou seja, não há ponderação que demonstre uma análise pautada na perspectiva dos direitos humanos. A implantação precipitada de tecnologias sem avaliação prévia quanto ao seu impacto para os direitos humanos e sem a devida fiscalização por órgãos de controle é uma questão preocupante.

Alguns organismos internacionais de direitos humanos alertaram para os riscos do crescente uso de tecnologias para vigilância massiva e seletiva por parte de governos e entidades privadas quando não se observam os parâmetros da legalidade, necessidade e proporcionalidade. Além disso, de acordo com as Relatorias de Liberdade de Expressão das Nações Unidas e a CIDH, “a vigilância deveria ser uma opção para os governos unicamente sob as regras mais estritas no contexto do cumprimento da lei, isto é, que estejam disponíveis, sejam adotadas publicamente e operem a partir dos princípios da necessidade e proporcionalidade, sob estrita supervisão judicial”. 

Os antecedentes regionais de perfilamento massivo e vigilância contra jornalistas, líderes sociais e defensores de direitos humanos na região observada são um grave indicador do seu risco potencial para as garantias mínimas da liberdade de expressão, proteção de dados pessoais e privacidade da população. Por isso, é necessário examinar minuciosamente essas tecnologias a fim de garantir que os Estados não reincidam nas violações de direitos humanos e ainda que, caminhando na direção oposta, efetivamente observem as normas internacionais que estabelecem que as atividades de vigilância estatal somente podem restringir direitos fundamentais quando sejam, de fato, devidamente cumpridos os parâmetros da legalidade, necessidade e proporcionalidade.

Além disso, o contexto atual evidencia que as tecnologias adquiridas e implementadas pelos Estados não contam com regulamentação suficiente para garantir o cumprimento dos critérios de legalidade, necessidade e proporcionalidade. Para suprir essa ausência, é indispensável que os Estados façam a avaliação de seu impacto para os direitos humanos antes, durante e após a implementação dessas tecnologias, a fim de assegurar que: (i) cumpram estritamente com as regras estabelecidas por lei; (ii) sejam necessárias para alcançar um objetivo legítimo; e (iii) que sua implementação não interfira de forma desproporcional com outros direitos fundamentais. 

Há um problema crônico na implementação das novas tecnologias

É extremamente alarmante que os países analisados não tenham realizado a avaliação dos impactos que podem gerar com a implementação das tecnologias, em termos de dados pessoais, vigilância da população e, inclusive, para verificar se são adequadas e se cumprem com seu propósito. Sobre esse  tópico, destacamos algumas conclusões que geram especial preocupação em relação às tecnologias estudadas no Brasil, na Colômbia e no Chile:

  • As finalidades alegadas para uso das tecnologias são muito genéricas. Essa amplitude enseja arbitrariedades. Esse é o caso do Brasil com os aplicativos Conecte SUS, Monitora COVID-19, Saúde Digital MG, assim como da Colômbia com ArcGIS, PAIWEB 2.0 e Mi Vacuna, países em que as entidades consultadas se limitaram a responder que as tecnologias “buscam proteger os direitos à saúde e à vida das pessoas”, a “atenção à saúde na pandemia” ou “proteção da saúde dos cidadãos”. No caso do Brasil, o Ministério da Saúde afirmou que o Conecte SUS cumpre com todos os requisitos legais e protege os direitos das pessoas. 
  • É especialmente preocupante o fato de que a amplitude com a qual se definem as finalidades das tecnologias possibilite seu uso espúrio para outros propósitos. A situação atual da implementação de tecnologias suscita preocupação quanto à possibilidade de seu reaproveitamento para fins distintos aos do enfrentamento da pandemia. Por exemplo, CoronApp é uma tecnologia que já existia anteriormente, mas foi objeto de desenvolvimentos posteriores que incorporaram novas funcionalidades intrusivas aos direitos fundamentais, como o contact tracing. Além disso, no desenvolvimento do aplicativo “Dados do Bem” no Brasil, verificou-se existir o envolvimento de empresas que operam no mercado de big data e que tem experiência em monetizar grandes conjuntos de dados de perfil de usuários. Embora haja compromissos assumidos para as políticas de privacidade, confidencialidade e proteção de dados, a amplitude de objetivos de uso das tecnologias e a ausência de avaliação de seu impacto para os direitos humanos é um ponto frágil, que expõe os usuários a riscos. A mesma situação ocorre com o aplicativo Saúde Digital no Brasil, devido ao volume e à variedade de dados coletados, pois a ferramenta coleta dados biométricos e é capaz de rastrear informação detalhada sobre a localização das pessoas. 
  • Omissão da ponderação para verificar o impacto do uso dessas tecnologias em outros direitos fundamentais. Em geral, as entidades alegam que a tecnologia gera impactos para a saúde e para a vida das pessoas, mas se calam sobre outros direitos como a liberdade de expressão, privacidade ou habeas data. Por exemplo, no caso do PAIWEB 2.0 na Colômbia, as entidades consultadas responderam à pergunta sobre a existência de avaliação de impacto em direitos humanos afirmando que a tecnologia tem efeito positivo sobre a vida e a saúde das pessoas devido à proteção oferecida pelas vacinas contra a COVID-19. 
  • Ausência de atuação dos órgãos de controle e do Ministério Público para a fiscalização destas tecnologias. De modo geral, não foram identificados mecanismos que demonstrem a estruturação de planos de fiscalização, o que seria fundamental para assegurar boas práticas por parte das instituições públicas envolvidas. Em diversas das respostas às solicitações de informação, tanto na Colômbia quanto no Chile e no Brasil, constatou-se que os órgãos de controle não fizeram a revisão das características, da funcionalidade e da abrangência das tecnologias, bem como de seus possíveis impactos sobre os direitos da população. O único caso em que o Estado realizou uma avaliação de impacto em direitos humanos e no qual houve fiscalização dos órgãos de controle foi na Colômbia, com o aplicativo CoronApp, mas isso ocorreu somente após a pressão da sociedade civil diante de seus evidentes riscos. Isso demonstra que a atuação da sociedade civil é essencial para gerar mudanças. No caso do CoronApp colombiano, o processamento de dados pessoais por meio do uso do aplicativo foi estudado pela Superintendência da Indústria e Comércio (SIC). A entidade recomendou a redação de uma Política de Tratamento da Informação (PTI) especial para o CoronApp, por se tratar de um projeto excepcional que coleta dados confidenciais de milhões de pessoas. É importante destacar que, embora seja positivo que tenha sido feita a avaliação de impacto dessa tecnologia em específico, isso só ocorreu como consequência da mobilização social e dos alertas efetuados por diversas organizações de direitos humanos e especialistas acerca dos riscos para os dados pessoais dos usuários. A audiência pública realizada no Congresso sobre os riscos do aplicativo foi o catalisador para que os órgãos de controle realizassem essa avaliação de impacto, que não estava inicialmente prevista para o CoronApp. Isso demonstra que a aquisição e o uso de tecnologias tornam-se objeto da atenção do Estado em reação às denúncias e reclamações da sociedade civil. 
  • Os Estados não estão monitorando a eficácia das tecnologias implementadas. Por exemplo, no caso da Colômbia, houve falhas graves quanto ao monitoramento da eficácia do CoronApp. Esse aplicativo foi inicialmente promovido como uma solução para a diminuição do contágio por meio do rastreamento dos sintomas. Inicialmente, o aplicativo CoronApp utilizou um protocolo centralizado de contact tracing da empresa Hyplelabs. Quando esse protocolo apresentou problemas, foi anunciada a utilização de protocolo descentralizado desenvolvido pela Apple e Google, mas finalmente foi decidida a implementação do protocolo centralizado da Bluetrace, desenvolvido pelo governo da Cingapura. Atualmente, o aplicativo não realiza o contact tracing, apesar desse ter sido o principal motivo de sua criação. Diversos problemas e dificuldades na implementação dos protocolos de contact tracing demonstraram que não era possível realizar um rastreamento verdadeiro do contágio. Adicionalmente, para garantir que o contact tracing efetivamente sirva para controlar os casos de COVID-19, 60% da população precisa fazer uso constante do aplicativo com o Bluetooth ligado. O caso do CoronApp revela como ocorre a implementação de tecnologias sem uma verdadeira análise prévia sobre sua funcionalidade e eficácia pois, para que o aplicativo efetivamente servisse a essa finalidade, primeiramente o Estado deveria garantir a plena inclusão digital, já que é impossível conseguir que 60% da população de fato instale o aplicativo, dada a enorme desigualdade de acesso à conectividade no país. 
  • Desenvolvimentos tecnológicos têm sido impulsionados pelos Estados. Na Colômbia, todas as tecnologias, salvo a ARCGIS 2.0, foram desenvolvidas internamente por diferentes entidades públicas, e a informação coletada permanece em poder dessas entidades. Essa situação é diferente da que ocorre no Brasil, país onde a maioria dessas tecnologias foi desenvolvida por empresas privadas. A Colômbia é um país com um antecedente contextual grave de vigilância ilegal por parte do Estado, onde ocorreram diversos escândalos de vigilância e perfilamento contra defensores de direitos humanos, jornalistas e políticos. No 177º Período de Sessões, a CIDH reiterou que a vigilância ilegal na Colômbia é sistemática e a impunidade tem persistido, assim como a falta de esclarecimento sobre as motivações e estruturas que operam por trás dessas ações. O fato de que o Estado colombiano desenvolva suas próprias tecnologias na ausência de regulamentação para sua programação e implementação confere ao Estado enormes poderes para realizar ações de vigilância, de perfilamento e de coleta massiva de dados pessoais, ainda mais considerando que os dados são coletados pelo próprio Estado

A análise das respostas às distintas solicitações de informação mostram a necessidade de criação de metodologias específicas para realizar a avaliação do impacto em direitos humanos no momento da aquisição e desenvolvimento de novas tecnologias. Ainda que os parâmetros de proporcionalidade e legalidade sejam aplicáveis aos países estudados, num contexto de rápido crescimento de tecnologias e de falta de controle sobre seu uso, tais critérios são insuficientes para prevenir a violação de direitos fundamentais. Por isso, é necessária a criação de normas, parâmetros e metodologias específicas para a realização de avaliações de impacto em direitos humanos, o que promoveria a devida diligência nos Estados em matéria de direitos humanos e a transparência na implementação e uso de tecnologias.

Em audiência temática da CIDH sobre tecnologias de vigilância realizada neste ano, organizações da sociedade civil alertaram sobre o enorme risco que representa a aquisição e implementação de tecnologias com capacidade de vigilância sem o adequado escrutínio. A investigação realizada em #EstamosVigiando demonstra que estes riscos não são eventuais e também não são especulações. Por isso, é necessário que os Estados implementem processos de devida diligência em matéria de direitos humanos para quem projeta, desenvolve, implanta, vende, obtém ou explora tecnologias com capacidade de vigilância. Um elemento primordial para a devida diligência em direitos humanos deve ser a realização de avaliações periódicas e exaustivas de seu impacto sobre os direitos humanos.

(1) A/HRC/48/L.9/Rev.1, del 7 de Octubre de 2021: OP6. Calls upon all States: (h quarter) to refrain from the use of surveillance technologies in a manner that is not compliant with international human rights obligations, including when used against journalists and human rights defenders, and to take concrete actions to protect against violations of the r

(2) Relatoria Especial de la ONU para a Proteção e Promoção do Direito à Liberdade de Opinião e Expressão & Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão da CIDH (21 de junho de 2013). Declaração conjunta sobre programas de vigilância e seu impacto para a liberdade de expressão. 
Obtido de: https://www.oas.org/es/cidh/expresion/showarticle.asp?artID=927

(3) Relatoria Especial da ONU para a Proteção e Promoção do Direito à Liberdade de Opinião e Expressão & Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão da CIDH (21 de junho de 2013). Declaração conjunta sobre programas de vigilância e seu impacto para a liberdade de expressão.
Obtido de: https://www.oas.org/es/cidh/expresion/showarticle.asp?artID=927

(4) Necessários e Proporcionais. Princípios internacionais sobre a aplicação dos direitos humanos à vigilância em comunicações. Obtido de: https://necessaryandproportionate.org/files/2016/03/04/spanish_principles_2014.pdf

(5) Ibídem.

(6) Há duas formas de realizar o contact tracing: a centralizada e a descentralizada. A descentralizada é melhor porque se faz diretamente desde o aplicativo em cada celular e nunca chega a um servidor. Por sua vez, o contact tracing centralizado do CoronApp é gerido a partir de um servidor do Ministério da Saúde e os dados são transferidos e guardados em uma base de dados centralizada. Esse sistema é um risco para a privacidade porque o servidor central pode suspender o sigilo que garante o anonimato dos identificadores e poderia, em último caso, rastrear pessoas.

(7) Karisma. CoronApp: muitos dados e poucos benefícios. Obtido de: https://web.karisma.org.co/coronapp-muchos-datos-pocos-beneficios/; Science. Quantifying SARS-CoV2 transmission suggests epidemic control with digital contact tracing. Obtenido de: https://www.science.org/doi/10.1126/science.abb6936

(8) Estes são alguns fatos sobre a vigilância ilegal exercida pelo Estado na Colômbia: (i) em 2014, a Revista Semana revelou que, em uma sala de operações de inteligência do Exército conhecida como “Andrômeda”, foram realizadas atividades de monitoramento de jornalistas, defensores de direitos humanos e oficiais do Governo; (ii) em 2020, a Revista Semana revelou que o Exército executou um programa de rastreamento informático cujo alvo foi de aproximadamente 130 vítimas, por meio de um software chamado “Homem Invisível”; (iii) em 2020 a FLIP revelou que o Governo, em conjunto com a firma DuBrands, classificou 468 influenciadores do Twitter por meio dos qualificativos “positivo”, “negativo” ou “neutro”, com base em seu grau de afinidade com o Governo. Na lista, aparecem jornalistas, políticos e formadores de opinião em redes e meios de comunicação.

(9) Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Práticas de interceptação ilegal na Colômbia. Audiência nº. 10 do 177º Período de Sessões. Obtido de: https://www.youtube.com/watch?v=29yEBvjY3ZM

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